domingo, 12 de outubro de 2008

Totalidade - 1957 (à minha futura mulher)

Enquanto são as ruas
Estradas longas de sol depois da chuva
Enquanto nesta hora exuberante e fresca
Tu, meu amor estremeces por sobre o espaço húmido

Enquanto alegre ritmo
Pulsa em têmporas jovens
E crescem com os braços as certezas do dia
Tu e eu recebemos o Génesis do sangue
A manhã e a tarde das origens do mundo.

1957

Secaram-se-me as lágrimas

Secaram-se-me as lágrimas.
Encolhem-se os dedos das mãos postas.
Sopra nas veias de um corpo envelhecido
Um vento frio.

Secaram-se-me as lágrimas.

Dezembro de 2007

Poluição

Faltava apenas um passo
E com areia tapou
Saliva que se esgotou
Preferiu túmulo de aço.

Menino tornado aborto
Júbilo não consentido
Dormem no brilho esquecido
Dos olhos de um peixe morto.

Anos 70

Momento VII

Tudo resumes
Tudo te pertence
Ávida boca de vermelho jovem.

Ninguém apagará
Teres sido.

1978

Momento V

Nascida uma outra vez
És o murmúrio que rasgou o tempo
O regresso.

1978

Momento III

Memória deslizante
Ficará
Na careta absurda da idade.

E também
Estrelas de olhos antigos.

Ficará o amor
Em desenho de corpo
Em aroma de sombra
Em dedos que se movem.

Meditação

Olhar-TE-ei
Com o mesmo olhar expectante e abismal
A mesma fronte ensombrada e indigna
e as antigas mãos em prece.

Oferecerei à Água

O cântaro vazio

1993

Matriz (à minha irmã)

Hálito regressa à boca que te lança no espaço.
Planta regressa à seiva
Nuvem regressa ao mar
Anjo regressa a Deus.

Homenagem a Hölderlin

Manhã de Verão.

Sugou-te o tempo como à verde folha
Calou seu grito o pássaro de Março
Emudeceu aquela jovem boca.

As pétalas
As asas
Só abrem na memória

1992

Aos Setenta Anos

Dia a dia
As portas que se fecham
A mão que acena
À tona de água.

A ruga dessa boca
Sorriu para a morte há quanto tempo?

E os olhos?
Sepultados na Lua não voltaram.

Distante canta a voz
Só porque sei que canta.

Lá fora fica a vida respirada.

Dia a dia
As portas que se fecham.

Dia 23 de Fevereiro (na morte do meu irmão)

Cais no abismo azul.
Não nos dizes adeus.


Dizias sempre adeus à nossa frente vivo
E à nossa frente vivo o teu sorriso certo
Era o firme regresso sem perguntas
Tão natural como o abrir dos dias.

Cais no abismo azul

Uma vez mais ninguém te vê partir.

Contigo estamos
Na infindável viagem da ternura.

29/02/1988

Deus

Não existes?
Existo para nada.

Existes?
Eu tão só
Chama na tua mão
Acesa ou apagada.



2000

Ao neto Guilherme - I

Olho o teu sorriso absurdo
A pele e a pupila
A expressão e o gesto
De inocência sem fundo.
Olho e vejo outra vez
Incorrigivelmente
A criação do mundo

1994